Depois da luta contra o aumento nos transportes, manifestações
dirigem-se para um universo difuso de causas, desde as mais específicas
até à reforma do sistema político.
Há três décadas, os brasileiros foram às ruas em massa pelas eleições
directas para Presidente da República. Em 1992, voltaram às ruas contra a
corrupção no governo de Collor de Melo.
Agora, estão nas ruas mas não há uma causa única por detrás dos
protestos. Sob um sentimento genérico de insatisfação, abrigam-se
diferentes queixas e reivindicações, que ninguém até agora conseguiu
reunir sob uma única bandeira.
Eis algumas delas, compiladas a partir das redes sociais e sites na Internet que estão a tentar organizar tudo o que está em causa:
Aumentos nos transportes
Várias cidades brasileiras aumentaram o preço dos transportes públicos
em 2013. Em São Paulo, um bilhete simples passou de 3,00 para 3,20 reais
(de 1,00 para 1,07 euros). A forte contestação que se seguiu não é
inédita.
Em 1879, a cobrança de vinte réis nos transportes públicos puxados por
burros levou à chamada Revolta do Vintém, no Rio de Janeiro. Mais
recentemente, em 2003, milhares de pessoas paralisaram as ruas de
Salvador, na Bahia, dando origem ao Movimento Passe Livre, o motor das
primeiras manifestações agora. Tanto São Paulo como o Rio de Janeiro
recuaram no aumento. Os cidadãos exigem agora que as contas sejam
tornadas públicas.
Menos Mundial, mais saúde
No país do futebol, os gastos com o Mundial de 2014 estão no centro dos
protestos. No último balanço, apresentado esta semana pelo Governo, a
conta subiu para 28 mil milhões de reais (9,4 mil milhões de euros),
entre construção de estádios, investimentos na mobilidade urbana e
melhorias nos portos e aeroportos. Os brasileiros desconfiam da gestão
dos investimentos, queixam-se das regras impostas pela FIFA e reclamam
antes mais dinheiro para áreas básicas como saúde e educação. O
investimento público na educação passou de 3% para 5% do PIB e na saúde
de 2,5% para 3,8%, de 2000 a 2010, segundo um balanço de 2012 do
Instituto de Pesquisa Económica Aplicada.
Mas não só o valor está abaixo do padrão internacional de referência
(7%), como a qualidade no sector público é substancialmente inferior à
do privado. Numa das manifestações, um cartaz exigia "hospitais com
padrão FIFA de qualidade".
Nova ordem política
A insatisfação com a política partidária e os políticos em geral é um
denominador comum dos protestos. Dos casos de corrupção mal resolvidos,
ao histórico fisiologismo partidário no Brasil, tudo é motivo de
crítica. Muitas propostas de mudança estão a circular, como a
possibilidade de eleição de independentes, a redução dos salários dos
políticos ou o fim do voto obrigatório.
Algumas já estão ou estiveram em tramitação no Congresso, como a da
equiparação penal do crime de corrupção a crime hediondo ou a da
introdução, na Constituição, de um mecanismo para revogação do mandato
do Presidente e parlamentares por referendo popular. Também se clama
agora pelo fim do chamado "foro privilegiado", que faz com que membros
do Congresso não sejam julgados em instâncias inferiores. Mas a ideia
não é consensual, com muitos a chamarem a atenção para o facto de um
tribunal superior dar maiores garantias de independência nestes casos.
Políticos indesejados
Os protestos estão a realimentar a ira contra determinados políticos. O
presidente do Congresso Nacional, Renan Calheiros, é o principal alvo.
Calheiros foi acusado de corrupção e uso de dinheiros públicos em 2007,
mas ilibado numa votação no próprio Congresso, que presidia nesta altura
e voltou a presidir agora em 2013.
Outro alvo é Marco António Feliciano, presidente da Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Pastor evangélico,
Feliciano tem sido criticado por declarações polémicas em relação aos
homossexuais, às mulheres e aos negros.
Muitos, porém, têm alertado para os riscos de o movimento se transformar numa injusta e inoportuna "caça às bruxas".
PEC 37, PEC 33 e "cura gay"
As manifestações estão a dar força a movimentos contra determinadas
propostas legislativas agora em discussão. Uma delas é a Proposta de
Emenda Constitucional 37 (PEC 37), que retira ao Ministério Público a
competência para investigar crimes, deixando-a na esfera apenas das
polícias federal e civil.
Teme-se que isto beneficie os criminosos, pois, sem capacidade das polícias, muitos processos acabarão por prescrever.
Outra proposta é a PEC 33, que limita os poderes do Supremo Tribunal
Federal (STF), subjugando algumas das suas decisões ao Congresso ou a
plebiscitos.
Outro projecto legislativo que tem vindo à baila nos protestos é da
"cura gay" - proposta que revoga uma disposição do Conselho Federal de
Psicologia que actualmente proíbe os psicólogos de colaborarem em
qualquer serviço que proponha "tratamento" da homossexualidade. A
proposta teve uma primeira aprovação esta semana, mas ainda vai ser
discutida no Congresso.
E muito mais
Nas redes sociais, não faltam sugestões de outras causas para associar
aos protestos: em defesa do Estado laico, a favor de uma lei para
regulamentar a aquisição de armas, contra o TGV entre o São Paulo e o
Rio de Janeiro, em prol de taxas aos poluidores e incentivos às
actividades sustentáveis.
A questão dos transportes apenas acendeu o rastilho, como resume um
cartaz empunhado pela apresentadora de programas de culinária Palmira
Onofre, 82 anos: "Nasci em 1931, vi duas guerras mundiais, sobrevivi
durante a ditadura. Acreditem. Não é só por R$0,20 [vinte centavos]".
Fonte: publico.pt
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