“NOTA DOS AUTORES"
O Capitão morreu na caatinga: esse é o mote da história,
sugerido por
Olderico Campos Barreto. Aliás, a idéia nasceu de uma
conversa com ele, sobrevivente ocasional da tragédia. Era preciso
escrever tudo aquilo que revelava entre quatro paredes, na cadeia e
depois, sempre aos sussurros. Volta e meia o projeto ressurgia e ia
sendo adiado pela certeza de que se publicássemosa verdade, nos meados
de 70, viriam represálias. Até que em abril de 1979, ainda às voltas com
o processo na Justiça Militar, por conta do seu envolvimento no caso
Lamarca,
Olderico resolveu depor de forma diferente da que se acostumara
ao longo dos anos. Foram fitas e mais fitas gravadas, cheias da voz de
um excelente contador de histórias e um dos poucos que conseguiram reter
o drama da morte, no seu caso, a perda de dois irmãos e muitos amigos. É
o depoimento de um homem carregado de convicção: a morte não é nada
quando vem pela lealdade, amizade, cumprimento de um trato ou fidelidade
a uma causa. Sempre é melhor morrer do que trair um amigo. Assim é
Olderico.
Pesquisando, documentando, entrevistando sobreviventes e agentes da
repressão, seguimos adiante. Mônica Teixeira, jornalista de São Paulo,
fez de tudo. Por suas mãos passaram Ariston Lucena, Lúcia Alverga, Cabo
Mariani, Antônio Spinoza, muitos outros personagens . Mariluce Moura,
repórter baiana, também ajudou. Da França, João Lopes Salgado atendeu
nosso apelo e enviou seu depoimento, gravado. Em Santa Tereza, no Rio de
Janeiro, Alex Polari de Alverga falou um dia inteiro conosco, Cesar
Benjamin junto. Em Brasília, autoridades foram ouvidas e Erasmo Dias
esclareceu sua participação no Vale do Ribeira. À região onde
Lamarca
morreu fomos duas vezes.
Cabia-nos comprovar as informações – descartar as mentiras publicadas
na imprensa amordaçada pela violência da ditadura – e aproveitar as
reportagens sérias, particularmente do “
Pasquim”, “Em Tempo”, e
“Coojornal”. O trabalho de correção dos originais recebeu a importante
colaboração de Adilson Borges dos Santos, repórter, ex-revisor de “A
Tarde”, em Salvador. O livro foi assim, fruto de um esforço coletivo.
Tão coletivo que resolvemos preservar o ritmo do discurso de alguns
personagens – Olderico, um deles. Rejeitadas as fantasias, assumimos as
versões das fontes que mereceram crédito, as que representaram maiores
coincidências entre si, na Bahia e no Sul. Mas é impossível ter toda
certeza numa reportagem como essa, tanta a dor, o medo, a perplexidade,
que ainda tomam conta dos sobreviventes – tanta repressão presente,
segredos guardados sob armas. Os relatórios do Exército serviram para
confirmar algumas coisas, mas, em muitos casos, nem para isso. Bastou o
livro ganhar as ruas para surgirem as primeiras controvérsias. Numa
delas, Eliana Gomes de Oliveira, hoje morando no Rio de Janeiro, nega
com veemência que tenha tido qualquer tipo de relação afetiva com um
agente do
DOI-CODI quando foi presa em 1971, como haviam afirmado alguns
de seus companheiros em depoimentos prestados aos autores.
A história ganhou corpo. Lamarca não foi o “assassino frio e
sanguinário” mostrado na imprensa por pressão do Exército, muito menos
um “Messias sem Deus” ou joguete da esquerda armada. Nem o herói
imaculado apresentado por admiradores fantasiosos, no exterior. O
Capitão Lamarca absorveu a tragédia de seu tempo e viveu o drama, todo,
de um período em que a tortura e o assassinato político eram métodos
considerados normais pelo Estado brasileiro. Os anos somados vão
tornando possível uma análise política fria. Duro é sacar o lance do
oficial do Exército Brasileiro, carreira brilhante à frente, que,
inconformado, rasga sua farda, aposta noutro futuro – sonha com a
humanidade livre, mete o peito resoluto em busca da liberdade e leva às
últimas conseqüências o que julgava acertado.
O velho José Barreto, pai de
Zequinha, Otoniel e Olderico, camponês
calejado, desses que nunca abandonam a roça, sentiu nas costas todo o
peso da violência do regime pós-64. “Vi coisa que nem sabia que existia.
Eu vi o mundo de pernas para cima e em cima de mim”, diria ao repórter
Paolo Marconi, do “Coojornal”, em 1979. “
Fleury teve uma morte muito
honrosa. Se tivesse 50 vidas para perder ainda seriam poucas”,
completaria. José Barreto continua lá, em Buriti Cristalino, sertão da
Bahia, trabalhando sob o peso de seus 72 anos. Este livro é dele.”
Transcrito do Livro “LAMARCA O CAPITÃO DA GUERRILHA”, de Emiliano
José e Oldack Miranda, Oitava Edição, de março de 1984, por José Roberto
Del Valle Gaspar, em 16/02/2012.